13 de setembro de 2003

Filosofando
Efeito posterior da antiga religiosidade.
Todo homem irrefletido acha que somente a vontade é atuante; que querer é algo simples, puramente dado, não deduzível, em si mesmo inteligível. Está convencido de que quando faz algo, quando desfecha um golpe, por exemplo, é ele que golpeia, e que golpeou porque quis fazê-lo. Ele não nota problema algum aí, basta-lhe o sentimento da vontade, não apenas para a suposição de causa e efeito, mas também para a crença de compreender sua relação. Ele nada sabe a respeito do mecanismo do evento e do trabalho cem vezes sutil que tem de ser realizado para que se chegue ao golpe, nem da incapacidade da vontade mesma de fazer sequer uma parte mínima desse trabalho. Para ele, a vontade é uma força magicamente atuante: crer na vontade como causa de efeitos é crer em forças magicamente atuantes. Originalmente, toda vez que presenciou um evento o homem acreditou numa vontade como causa e em seres pessoais, dono de vontade, atuando no fundo - o conceito de mecânica lhe era muito distante. Mas, como por períodos enormes o homem acreditou somente em pessoas (e não em matérias, forças, coisas, etc.), a crença em causa e efeito se tornou para ele a crença fundamental, que ele aplica toda vez que algo acontece - ainda hoje, instintivamente, como um atavismo da mais remota origem. As teses de que "não há efeito sem causa", "todo efeito é novamente causa", aparecem como generalizações de teses muito mais estreitas: "Onde há atuação, houve vontade", "Só é possível atuar sobre seres donos de vontade", "Nunca se sofre puramente e sem consequência um efeito, sofrê-lo constitui sempre uma excitação da vontade" (para a ação, a defesa, a vingança, a represália) - entretanto, nos primórdios da humanidade estas e aquelas teses eram idênticas, as primeiras não eram generalizações das segundas, mas estas, elucidações das primeiras. - Ao supor que tudo existente não passa de algo querente, Schopenhauer alçou ao trono uma antiga mitologia: parece que ele nunca tentou analizar a vontade, pois acreditou na simplicidade e imediaticidade de todo querer, como fazem todos - quando o querer é um mecanismo tão bem treinado que quase escapa ao olhar observador. Em oposição a Schopenhauer ofereço as seguintes teses.

Primeira: para que surja a vontade, é necessária antes uma idéia de prazer e desprazer.

Segunda: o fato de um estímulo veemente ser sentido como prazer ou desprazer está ligado ao intelecto interpretante, que, é certo, em geral trabalha nisso de modo inconsciente para nós; e o mesmo estímulo pode ser interpretado como prazer ou desprazer.

Terceira: apenas nos seres inteligentes há prazer, desprazer e vontade; a imensa maioria dos organismos não tem nada disso.

Texto extraído do livro A Gaia Ciência de Friedrich Nietzsche.

Devidamente copiado do Smriti

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