1 de março de 2010

Fluxo da Maré – Uma desventura de Omnichrom, o super-herói das realidades alternativas


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Em um quadro geral, visto de cima, vemos o calçadão da praia de Copacabana, num final de madrugada. Poucas pessoas circulam por ele. À medida que a visão vai se aproximando (pode ser no mesmo ou em diferentes quadros), conseguimos definir essas pessoas. Num extremo, um velho com roupa de corrida está fazendo uma caminhada ritmada. Perto de um quiosque, uma prostituta está contando dinheiro. Um carro da polícia está parado, onde vemos um policial esfregando seus olhos, combatendo o cansaço. No outro extremo, um rapaz, vestido de roupas da moda e um largo crachá escrito "imprensa" pendurado no pescoço está mijando em um coqueiro na areia e, bem próximo dele, uma menina de rua (16 anos aprox.) deitada está dormindo, coberta por um pano sujo. Perto deles dois está Omnichrom, o super-herói de realidades alternativas, sentado num banco no calçadão da praia, observando o sol nascer e o distante movimento das ondas, impassível. 

Nosso herói é um ser todo de branco, seu corpo, sua pele, todo e inteiramente branco. Ele não tem cabelos, não possui sexo definido. Forte, porém não é musculoso, possui altura mediana. Algumas partículas douradas flutuam ao seu redor, em diversas velocidades e direções. Algumas são vistas, outras apenas formam um brilho dourado ao seu redor. Seus olhos e sua boca têm um brilho prateado. Um risco prateado corta o herói em dois do topo da cabeça até a virilha. No peito brilham levemente as letras OC. 

As pessoas começam a se mexer. A prostituta se desloca para mais próximo da rua; o policial entra no carro; o velho aumenta o passo na direção do quiosque; o rapaz volta pro calçadão e a menina acorda, como se incomodada pelo cheiro de urina e por algum sonho que se foi. Omnichrom continua parado. Podemos vê-lo melhor, bem de perto, enquanto as ações são destacadas. O velho passa pela prostitua, que está olhando para rua deserta como se esperasse algum carro. O velho finge não percebê-la, enquanto ela abaixa a cabeça, evitando o contato visual, quando ele passa. O policial ajeita o banco do motorista do seu carro para trás e coloca seus pés para fora da janela do carro. O rapaz anda quase que em zigue e zague e a menina levanta xingando o odor, arrastando o pano. 

Podemos ver bem próximo que Omnichrom olha fixamente para o mar, mas parece que, de alguma forma, ele está ciente de tudo que se passa a sua volta.

 

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Um táxi entra no extremo oposto pela avenida atlântica, ao passo que, do outro lado, a prostituta levanta a cabeça e o visualiza. Não conseguimos ver seu interior, muito menos o seu motorista. O rapaz passa por Omnichrom sem sequer percebê-lo, sorrindo e cantarolando num alegre pilequinho. O policial de novo ajeita as botas , enquanto que o velho olha para o policial com um contido desprezo. A menina então vê, num sobre-salto, Omnichrom. Ele continua sentado exatamente como antes. Percebemos somente agora um grupo de gaivotas negras de barrigas brancas passarem por cima dele, brilhando por baixo pela forte iluminação da praia. Tudo está em movimento, em fluxo, apenas Omnichrom está parado. Em todas as direções, ações das personagens. O rapaz chuta uma pedra portuguesa e comemora um gol, o táxi muda de faixa quando a prostituta faz sinal, o policial mexe uma ultima vez seus pés com botas, o velho desacelera e passa uma pequena toalha sobre seu rosto. O rapaz percebe que seu zíper ainda está aberto e o fecha com certo esforço enquanto caminha em passos bêbados e a menina chega bem perto de Omnichrom, e começa a encará-lo. Ele continua olhando o mar, que começa a recuar bastante. Embaixo, o título em letras grandes: "Fluxo da Maré".

 

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Cenas em Flashback preto-e-branco. Um garoto está num colégio fazendo uma prova. Apesar de aparencia normal, seu rosto parece muito com o de Omnichrom. A ponta do lápis dele quebra. O velho aparece ao lado de um túmulo no cemitério São João Batista, ajeitando uma coroa de flores que dizem "nunca irei esquecê-la". O policial está andando por uma estrada cheia de árvores em volta à cavalo. A prostituta está numa loja calçando um sapato de ponta agulha de oncinha de marca. Sentados no Maracanã, o rapaz está assistindo uma partida, ao seu lado percebemos uma silhueta corpulenta, mas ainda não conseguimos definir quem é. 

Já presente em cores a menina está olhando fixamente para Omnichrom e fala quando a ultima gaivota termina de passar por cima deles. Podem ser vários quadros.

 

Menina –(encarando) Moço...?
Omnichrom – (sem se mexer, em uma voz metálica) Olá.
Menina (com certo medo) Puxa, é você mesmo... Disseram que você tinha partido... Pra Lua ou algo assim...?
Omnichrom – Eu estou em Titã, uma lua de Saturno, vendo o movimento dos anéis, mas achei que você queria falar com alguém...
Menina – Hã?
Omnichrom -... Pequena Joana.
Menina – Como... Como você sabe como eu me chamo...?
Omnichrom – Daqui a mais ou menos 10 minutos você vai me dizer... (olha pra ela pela primeira vez) quando estiver chorando.


A Menina olha pra ele sem conseguir dizer nada. Omnichrom a encara e se levanta, cainhando para a areia, voltando novamente seu olhar para o mar. Ela o segue.

 

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Ele finalmente para e se senta de pernas cruzadas sobre a areia fofa.  Ela se aproxima, olhando as pegadas que ele deixou pra trás. Ela pergunta com rapidez, mostrando um pensamento rápido e astuto.

Menina – Saturno? Lua? Anéis? Você tá brincando comigo? Por quê?
Omnichrom – Porque é lá que eu estou. E é pra lá que eu vou te levar, depois de você tentar me convencer de salvar as pessoas daqui.
Menina – Salvar? Convencer do que? Que doideira é essa?

 

O rapaz passa a andar meio de vagar, olhando para longe, abstraído. O policial se move agora para ouvir o radio de policia. A prostituta se inclina pela janela do táxi, percebemos que o taxista é o sujeito corpulento no Maracaná do Flashback da pagina  anterior que, apesar de aparecer coberto por sombras, parece nitidamente ouvir a prostituta com extrema má vontade. O velho para de correr e começa a andar, alongando os braços no alto da cabeça.

 

Omnichrom – São possibilidades, pequena Joana, infinitas possibilidades. Posso ainda estar aqui e talvez você possa me convencer aqui mesmo, ou talvez eu a deixe antes da onda vir.
Menina – (olhando ainda pra ele, começa a olhar pro mar, gagueja) On...Onda?

 

O mar está recuando bastante. Ações indefinidas dos outros personagens, não se consegue distinguir o que eles estão fazendo, tudo está borrado.

 

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Menina – (olha pra ele com muito medo, mas um pouco de raiva) É isso? Você vai inundar a praia? Eu vou morrer?
Omnichrom – Eu não vou inundar nada. Isso já está predestinado. E não, não tem haver com o aquecimento global ou qualquer coisa mundana, trata-se de um evento isolado, quer dize, mais ou menos... "Ai de ti, Copacabana" já até profetizaram... Bem, não importa. É inexorável. E é por isso que eu estou aqui, agora.
Menina – (confusa, quase cômica) Eu pensei que você estava em lá em Titã...
Omnichrom – Essa possibilidade ainda existe, mas agora estou aqui. Minha mente estava numa prova de geografia, na minha infância, já meu corpo matriz, naquele satélite distante. Mas sua presença afetiva me fez voltar para o aqui-agora.
Menina – (rápida pausa) Eu não estou entendendo nada...
Omnichrom – (cortando-a) E nem precisa entender. Está longe do entendimento humano, de certa forma. E claro, toda aquela ladainha de que a física quântica já explicou tudo... Bem, não é tão simples assim, mas também pode ser que seja... Pode ser que seja até bem simples, bem mais simples que física quântica... Acho que prefiro a mitologia. Ela explica de forma menos direta, é verdade, mas de um entendimento menos intelectual, mais sensorial. Claro, ela confunde um pouco, mas com o tempo e alguma maturidade... (a mão de Omnichrom pega um punhado de areia)
Menina – Olha, eu sou bem inteligente, tá? Não é porque eu moro na rua que eu...
Omnichrom – Eu posso ver seu fluxo temporal, não se preocupe.
Menina – Fluxo... Você quer dizer minha vida? Minha vida toda?... (ficando com os olhos borrados) Então eu vou morrer?
Omnichrom (deixando a areia escapar de uma das mãos em direção a outra, mais embaixo) Claro que vai.

 

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A menina olha para o mar, que continua recuando.

 

Omnichrom – Ah, você diz agora? Não, agora não.

 

Ela olha confusa e assustada para ele.

 

Omnichrom – Agora não. Em 50 anos talvez... Ou em 6 minutos. Ou então eu posso levá-la junto comigo para Titã e...
Menina - (irritada) Eu não quero ir pra lugar nenhum!... Eu quero...
Omnichrom – (Deixando o ultimo grão sair de sua mão para outra, falando pausadamente, com leve tédio) Você quer viver.
Menina (olha para baixo) Sim.
Omnichrom- Por quê? Sua vida não é muito difícil? Você acha que todos que estão aqui merecem que algo de bom aconteça com eles? Se eu intervier, aquele rapaz vai descobrir ainda hoje que sua divida no banco é bem maior que ele pensava. Aquele policial lá naquele carro não será poupado por seus superiores numa investigação e será acusado de corrupção - como bode expiatório - de mais um "escândalo policial" que aparece e some da mídia; Já aquele senhor correndo, ele luta por uma saúde que ele mesmo já abandonou em seu íntimo e você nem quer saber o que pode acontecer com aqueles dois no táxi.
Menina – (corta-o) Você é um deus?
Omnichrom – Como?
Menina – Você é uma espécie de Orixá? De Cristo, Buda ou algo assim?
Omnichrom - Ah... Ha ha ha ha... Não, não, Joana, eu...
Menina – Então como pode saber disso tudo?
Omnichrom – Já disse, eu apenas vejo...
Menina – Olha aqui, acho que você vê o que você quer ver!
Omnichrom –... Como assim...?

 

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Menina – Sabe, que nem minha mãe. Ela sempre se preocupava com tudo, comigo, meus irmãos, minha família, os vizinhos, as pessoas na Rua... Mas ela sempre pensava o pior de nós. Dela mesma. Ela sempre achava que tava todo mundo certo, todo mundo menos ela mesma e quem era próximo dela. Não era por mal, sabe? Mas acho que ela não tinha muita... Como era?... Auto-estima, é, é isso, auto-estima... Enfim, ela tinha muita tristeza e muita magoa da vida, achava que havia perdido algo que nunca mais iria recuperar, sei lá.... Então ela  me fazia mal, muito mal mesmo, mas sem nem saber. Então eu fugi. Ou melhor, eu fui embora. Foi o que deu pra fazer, pois ela vivia reclamando de tudo, botando erro em tudo e pior, achava que o erro era sempre nosso, não conseguia ver que tudo são... Escolhas.
Omnichrom –... Escolhas...
Menina – Sim, é isso. E acho que você vê as coisas assim. Claro, você pode ver bem mais que a maior parte das pessoas, mas você... Fica preso no que você entende, no "como" você entende e não enxerga que as coisas podem ser mais do que elas são. Bem mais... (fala como se citasse alguém). "As coisas podem ser o que você quiser" Quer dizer, sei lá, talvez não tudo, mas se não estivermos abertos... (ela começa a chorar) Sabe, eu gostava de um menino, mas ele morreu. Ele era bem mais velho que eu, mas eu o adorava. Ele me dava muita força. Muita mesmo. Sempre dizia coisas legais pra mim, lia muitas coisas legais, me ensinava muito. Me ensinou a gostar de ler. Ele era de uma ONG. Ai a ONG foi embora e ele ficou, com a grana dele mesmo. Ele levava muitos livros pra minha escola, com umas histórias muito legais, livros e quadrinhos sobre povos antigos, folclore sobre os índios brasileiros e o do povo africano e todos aqueles deuses bonitos... Lia muito com a minha turma, mas todo mundo ia embora e eu ficava lá com ele, lendo e lendo... E tinha umas peças de teatro muito legais, não tem nada mais legal que o teatro, né? Também iamos em uns centros culturais e uns museus incríveis... E isso foi só o começo. O melhor foi que ele nos ensinou a correr atrás disso tudo! Pesquisar em biblioteca, em sebo, na internet ... Ler vários dicionários... A gostar de palavras, sabe? Buscar o que a gente curte o que nos faz crescer. Crescer como gente, não como gado, sabe? E ele sempre dizia "Joana, você é muito inteligente, precisa aprender sozinha a observar o mundo. Lá está tudo o que podemos aprender, se levarmos ele pra dentro de nós." e eu acreditava nele, ou acredito ainda, não sei mais. Agora não posso contar mais com ele. Ele morreu... Ele mesmo dizia isso, que eu ia ter que um dia parar de contar com ele, mas mesmo aqui, eu sei que ele está comigo. De alguma forma. Nada dessa coisa de fantasma sabe? Ele tá no meu coração, bem aqui dentro. Tudo que eu vejo, ouço e sinto, ele está comigo. Faz parte de mim. Minha mãe também, apesar de tudo. Os dois, de certa forma. Você tem algo no seu coração?
Omnichrom – ( Completamente abestalhado) Meu ...
Menina – (ela limpa as lagrimas e fala agora com muita dignidade) Olha, quando nada em casa estava dando certo, quando essa cidade, esse país começou a afundar na lama e eu fugi... (a onda começa a aparecer no horizonte) quando eu fui embora... Quando eu fui seguir o meu caminho, eu... (ela para de olhar para o mar)...
Omnichrom –... Coração.

 

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Tudo se move muito rápido: O guarda liga o carro; O táxi se movimenta, levando a prostituta dentro; O velho está se alongando num banco do calçadão; O rapaz está com uma câmera fotografando o que parece ser o nascer do sol. A menina olha agora com muito choro se formando em seus olhos para a grande onda. Fora ela e Omnichrom, ninguém mais á percebe o maremoto. Ela limpa os olhos. 

 

Menina – (agora séria, sem mais chorar, olhando nos olhos de Omnichrom) Moço, eu sei que você pode fazer alguma coisa, eu ouvi falar de você. Eu li muito sobre você, sabe? Li tudo que pude. ... Olha, eu não queria mais morar lá com a minha mãe. Era muito duro, eu era um estorvo pra ela e tudo por lá só piorava,  e eu prefiro aqui, sabe? Nessa areia, bem perto do mar. Principalmente depois que meu amigo morreu... Sumiu... Enfim... Mas eu sonhei com isso, sabe? Com a onda. Com esta onda. E sonhei também que você me salvava. O meu amigo me dizia que meus sonhos eram alertas, idéias soltas, desamarradas, coisas assim. Que nem cadarço de sapato quando solta... (respira, depois fala pausadamente) Eu não quero morrer, (volta a fala rapidamente) mas eu também não quero que você se sinta mal por nada. Se quiser ir embora agora é melhor você...

 

Omnichrom levanta a mão com o resto de areia que cai. A onda enorme avança. Ele pisca. A Realidade se contorce e muda. A onda não existe mais. É como se nunca tivesse existido.  O mar está normal, calmo. O sol nasce. Omnichrom está parado com o braço levantado no ar e o resto da areia finalmente cai de volta na praia. Os dois carros, o taxi e a patrulhinha deixam a Avenida Atlântica; o velho e o rapaz atravessam a rua em lugares distintos, indo embora. Na praia, só restam a menina e Omnichrom.

 

Menina – (limpando o rosto) O senhor fez bem. Fez o que tinha de fazer. Amarrou o nó.
Omnichrom – Eu não fiz nada. Eu só deixei de fazer. Seu sonho é que me guiou. Você que é a super-heroína, Joana.

 

Eles dão as mãos

 

Menina – Venha, vamos molhar os pés.

 

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Grande quadro. Eles caminham na direção ao mar. O sol começa a subir mais, muita claridade.

 

Omnichrom – Sabe, Joana... Você fala muito bem....
Menina- (feliz) Obrigada. Leio muito. Graças àquele meu amigo...
Omnichrom –... Da ONG? Lembra o nome dele?
Menina – (Inspirada) Caio. O sobrenome eu não lembro. Mas você me fez lembrar muito dele... Me faz lembrar muito.... Por isso de "falar bonito"... É de propósito.  Eu lembro dele e ai falo bem. É uma homenagem. Eu gosto... E é tudo o que eu tenho. Falar  bem. Não que isso tenha me ajudado muito nos lugares que eu tentei trabalhar, sabe?...  Ele era mais ou menos da sua altura... Tinha os seus olhos também. Quer dizer... Parecidos. O jeito de olhar. Os olhos não... Ele era o meu super-herói! Os poderes dele eram menores que os seus, mas me marcaram profundamente, por assim dizer. Até que eu aprendi que eu devia ser a minha própria salvadora. Acho que ele me ensinou muito...

 

Rápida imagem de flashback preto-e-branco do cabeçário de uma prova, onde se lê "Caio" na parte do nome, e um rabisco com pedaço de grafite quebrado ao lado do O final.


 

Omnichrom – Ele devia gostar muito de você. E você... Você ensinou muito a ele, também!

 

Quadro menor. Ela sorri largamente. Ele apenas sorri levemente. De mãos dadas, colocam os pés na água. Sorriem para si e depois para o mar e o sol. 

FIM.

(Esse roteiro de 1994 era pra virar um roteiro pra HQ mais formal ou pra um storyboard de uma animação, mas não rolou nenhum dos dois, então republiquei aqui após algumas revisões... 
As pessoas odeiam o nome Omnichrom mas eu adoro. Todo mundo reclama que a Joana fala bem demais pra quem mora na rua, mas esta é uma realidade, que inclusive pode ser a nossa) ;)