20 de fevereiro de 2010

Sámkhya

Texto antigo, perdido no meu backup

Sámkhya é o dárshana (ponto de vista) do hinduísmo que constitui o respaldo teórico do Yôga. Essas duas filosofias (teórica e vivencial) estão conectadas de maneira tão intrínseca que mal podem ser estudadas separadamente. O Yôga, metodologia prática, busca através de técnicas o que o Sámkhya procura pelo conhecimento teórico: a libertação.

Para alcançar o estado de libertação denominado kaivalya, a consciência faz o caminho de volta da criação: o retorno ao discernimento entre púrusha e prakrití. Vale notar que referimos aqui à criação do mundo como um ato psíquico, que não acontece no tempo e no espaço. Púrusha é a essência final (ou primitiva) do homem. Sendo consciência pura, ele é o observador imóvel que contempla em silêncio o movimento da prakrití. Ele é distinto e independente. O púrusha é o motor imóvel da prakrití, a natureza primordial.

A prakrití é a única que se manifesta. Ela o faz por influência do púrusha e através da emissão de um princípio (tattwa). Este princípio gera outro princípio e, assim, forma uma névoa de manifestação que esconde o púrusha, embora este permaneça impassível diante de tal espetáculo de transmutação. Os tattwa são, portanto, etapas da manifestação do universo. Cada etapa, cada tattwa deve ser superado pelo yôgin para que este alcance, novamente, o púrusha.

O primeiro tattwa, portanto a primeira manifestação da prakrití, é chamada buddhi, inteligência pura e informal, supra-racional e supra-individual, que consegue discriminar o púrusha da prakrití. Buddhi se desdobra em ahamkara, a noção do eu (ich freudiano, vulgarmente ego), que introduz na consciência a oposição entre sujeito e objeto. A partir daí, inicia-se a grande confusão, pois o eu, que é prakrití, natureza, pensa que é púrusha, consciência. Ou seja, ele confunde o self com os estados psicomentais. A partir de então a prakrití se manifesta em fenômenos objetivos e psicofisiológicos que se diferenciam pela fórmula dos guna (atributos), isto é, de acordo com a predominância de cada guna, que são: sattwa, rajas e tamas.

O guna sattwa tende à iluminação, rajas gera atividade e movimento e tamas é o fator de resistência e obstrução. Qualquer coisa se esforça por realizar o seu estado "sáttvico", seu ser, superando sua condição "tamásica", inerte, através do esforço "rajásico", ativo, de vencer obstáculos. Tais atributos nunca se anulam, estão sempre presentes em toda manifestação de prakrití, mas têm uma relação de equilíbrio e tendência. O púrusha, por não ser parte da prakrití, não possui atributos.

A ignorância do eu é a causa de todo sofrimento. O objetivo do Sámkhya e do Yôga é suprimir o sofrimento ou as confusões da consciência através da libertação (moksha). Não cabe a nenhuma destas filosofias questionarem o porquê da confusão entre consciência e manifestação e aí está a sua praticidade. Tal questionamento é inútil, pois ultrapassa a capacidade da compreensão humana. O objetivo de ambos os dárshanas é fazer o caminho inverso através dos tattwas, superando cada etapa, alcançando estados de consciências mais elevados até superá-los, superando o eu e vislumbrando o discernimento entre púrusha e prakrití.

É importante esclarecer que a prakrití não tem um fim em si. Sua finalidade é o púrusha. Sua manifestação afasta o homem de seu conhecimento primitivo, mas deixa sempre o caminho livre para aquele que é capaz de enxergar o caminho da libertação. O impulso da prakrití é orientado para a libertação do púrusha, como se tudo fosse um grande espetáculo cíclico cuja razão de ser não somos capazes de compreender.