17 de fevereiro de 2004

Finalmente, alguem falou o óbvio ululante!

Arnaldo Jabor


Tucanos e sapos barbudos tinham de se unir
(Publicado em 17 de fevereiro de 2004 - Segundo Caderno do O Globo)

Este artigo é sobre nada. Não que eu não tenha assunto, pois prometi a mim mesmo que nunca começaria um texto na base do: “Estou diante da página branca...” Jamais usarei esse artifício de escrever sobre a dificuldade de escrever. Meu problema é outro: estão acontecendo coisas demais no Brasil, só que elas são nada. Paralisado por dívidas pavorosas, o governo do Lula fica diante do nada. E nada acontece. Agora, vamos assistir ao longo processo de desgaste de José Dirceu, por conta desse incidente vagabundo de um assessor. Vem tudo de novo que já vimos no governo de FHC, quando, por causa de uma besteira no caso Sivam, tiraram do governo o mais competente gerente da questão agrária e, por causa dos ridículos diálogos gravados no caso das teles, impediram a retomada do “desenvolvimentismo” no BNDES. É a máquina do atraso trabalhando para manter o Mesmo.

No Brasil, todos sabem que é impossível fazer política sem acordos sujos, sem favores sórdidos. Mas muitos reagem como se o país fosse uma “Suécia” utópica.

Há tempos, o prof. Gianotti ousou falar o que Maquiavel tinha escrito há 500 anos e foi crucificado, pois estaria “defendendo a falta de ética na politica”... Claro que episódios como o de Celso Daniel e esse agora são casos sombrios. Mas não são a regra do partido.

A maior novidade dos governos de FHC e de Lula foi justamente que, em vez de chafurdarem gostosamente no lodo, como sempre fizeram outros governos, buscam uma renovação ética. Os dois presidentes tratam a escrotidão fisiológica do país pragmaticamente, tentando governar com o país possível. Seu erro é que dois homens progressistas governaram, um com o apoio de ACM, outro com Sarney, e nunca se uniram. Como explicar isso? Ao contrário, nunca vimos uma oposição tão ferrenha como a do PT contra FHC. Temiam que o FHC tirasse o papel de “emissário do deus socialista” que seria do Lula; daí, o ódio dos sacerdotes do PT e da academia, por inveja e rancor, pois também precisavam da sagração do operário, o mito sexual da USP. Agora, que Lula virou realidade, perdeu carisma e é o amargor da pizza dos intelectuais.

O óbvio ululante

O Ibope começa a mostrar a decepção do povo, apesar dos bonés de Lula dançando xaxado, e começa a aparecer a realidade terrível: o atraso do país, a rede de burrice e despreparo político é mais resistente que qualquer governante.

Ninguém vê o óbvio ululante: FH e Lula subiram ao poder num tempo de “aporia” política, num tempo em que ninguém sabe o que fazer, nem aqui, nem no exterior. Os idiotas ociosos acham que os presidentes agem pouco por escolha. Será que não vêem que somos um país encalacrado num déficit mortal, com regras leoninas do FMI? O FH, por ser mais flexível que os ideólogos do PT, ainda realizou gestos de modernização do patrimonialismo oligárquico.

O PT tem mais dificuldade, pois tem a nostalgia bolchevista na alma, sem muita fé na democracia “burguesa”.

FH privilegiou a prática e esqueceu a “ideologia”; Lula tem ideologia e pouca prática. Tirando o “núcleo duro” que, graças a Deus, mantém o feijão-com-arroz da macroeconomia, o governo está paralisado diante do que fazer. Fica aparelhando o Estado e marcando grupos de estudo e Conselhos.

Enquanto isso, o país do atraso vai roendo os petistas no poder. Os grandes ladrões públicos se regozijam com esse escândalo que irrompeu com o assessor do “bolchevista sem causa” Zé Dirceu, que, digam o que disserem, é um progressista com o desejo de melhorar o país. Políticos que sempre pensaram em vantagens resolvem bancar prostitutas escandalizadas e pedem a cabeça dos social-democratas confusos diante da tal “terceira via”, que ninguém sabe onde é. Foi assim com FH e agora será com o Lula. Um udenismo malsão e hipócrita quer escangalhar a máquina do poder.

Os dois inimigos

O governo atual tem dois inimigos: os idiotas de esquerda e os espertos de direita. Enquanto os reacionários tramam a volta da zorra total, os idiotas da “esquerda pura” não agüentam a ausência da esperança que o socialismo prometia. Por isso, buscam certezas a qualquer preço. Essa gente tem o estranho desejo de conhecer a catástrofe, pois acham que ali, no fragor da uma grave crise, haveria a aparição da “realidade”, finalmente a revelação de uma “verdade”. Uma grande crise pode nos levar a um “chavismo” caótico, que seria pretexto para se desfazer a democracia institucional e dar poder a uma direita entreguista, essa sim, brutalmente “neoliberal”.

A verdade é que ninguém sabe como manter esse gigante solvente, pagando as contas, com credibilidade e, ao mesmo tempo, se desenvolvendo. É uma equação com 20 incógnitas e não temos aparato ideológico ou programático para resolvê-la. O governo Lula é tão atípico que gera uma dificuldade conceitual para ser avaliado. Tudo fica muito experimental, pois nosso repertório e código teóricos não dão conta desse ineditismo político. Ainda trabalhamos com conceitos que caducaram. Num debate entre “monetaristas” e “desenvolvimentistas” ninguém tem certeza de nada, fica tudo numa zona cinzenta de “achismos” e profecias emocionais. Assim, só resta o bate-boca ideológico: fulano diz que sicrano é reacionário e que beltrano traiu, e beltrano reage acusando fulano de alienado. É um passatempo, pois, enquanto os tucanos e sapos-barbudos debatem se “penico de barro dá ferrugem”, o país se afunda em impossibilidades reais, roído pelos dentes podres de podres poderes. A oposição que o PT fez a FH por oito anos foi um dos maiores erros históricos do Brasil, foi a grande oportunidade perdida. Será que isso vai se repetir? FH clamava por apoio que nunca veio em oito anos. O Lula já falou em “união com o PSDB”. Seria essencial para o país, mas a burrice vence sempre. Sei que sou um pobre romântico, mas por que isso não poderia acontecer?

Poderia, Jabor. Poderia, deveria e eu sinceramente queria.

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