Em 1958, minha avó paterna Zora Seljan
escreveu uma peça teatral tendo como base o Itan (mito iorubá)
que justifica a cerimônia conhecida nos candomblés como Águas de Oxalá, ocasião
em que se reverência esse orixá.
Reginaldo Prandi dá a seguinte versão resumida do mito em seu livro Mitologias
dos Orixás da Companhia das Letras, São Paulo, SP:
“Oxalufã
é banhado com água fresca e limpa ao sair da prisão
Um dia
Oxalufã, que vivia com seu filho Oxaguiã, velho e curvado por sua idade
avançada, resolveu viajar a Oyó em visita a Xangô, seu outro filho. Foi
consultar um babalaô para saber acerca da viagem. O adivinho recomendou-lhe não
seguir viagem. Ela seria desastrosa e acabaria mal.
Mesmo
assim, Oxalufã, por teimosia, resolveu não renunciar à sua decisão. O adivinho
aconselhou-o então a levar consigo três panos brancos, limo-da-costa e
sabão-da-costa, assim como a aceitar e fazer tudo que lhe pedissem no caminho e
não reclamar de nada, acontecesse o que acontecesse. Seria uma forma de não
perder a vida.
Em sua
caminhada, Oxalufã encontrou Exú três vezes. Três vezes Exú solicitou ajuda ao
velho rei para carregar seu fardo, que acabava derrubando em cima de Oxalufã.
Três vezes Oxalufã ajudou Exú, carregando seus fardos imundos. E por três vezes
Exú fez Oxalufã sujar-se de azeite de dendê, de carvão, de caroço de dendê.
Três
vezes Oxalufã ajudou Exú. Três vezes suportou calado as armadilhas de Exú. Três
vezes foi Oxalufã ao rio mais próximo lavar-se e trocar suas vestes. Finalmente
chegou a Oyó. Na entrada da cidade viu um cavalo perdido, que ele reconheceu
como o cavalo que havia presenteado a Xangô.
Tentou
amansar o animal para amarrá-lo e devolvê-lo ao filho. Mas neste momento
chegaram alguns súditos do rei à procura do animal perdido. Viram Oxalufã com o
cavalo e pensaram tratar-se do ladrão do animal. Maltrataram e prenderam
Oxalufã. Ele, sempre calado, deixou-se levar prisioneiro.
Mas, por estar um inocente no
cárcere, em terras do Senhor da Justiça, Oyó viveu por longos sete anos a mais
profunda seca. As mulheres tornaram-se estéreis e muitas doenças assolaram o
reino. Xangô desesperado, procurou um babalaô que consultou Ifá, descobrindo
que um velho sofria injustamente como prisioneiro, pagando por um crime que não
cometera.
Xangô
correu para a prisão. Para seu espanto, o velho prisioneiro era Oxalufã. Xangô
ordenou que trouxessem água do rio para lavar o rei. O rei de Oyó mandou seus
súditos vestirem-se de branco. E que todos permanecessem em silêncio. Pois era
preciso, respeitosamente, pedir perdão a Oxalufã. Xangô vestiu-se também de
branco e nas suas costas carregou o velho rei. E o levou para as festas em sua
homenagem e todo o povo saudava Oxalá e todo o povo saudava Xangô. Depois
Oxalufã voltou para casa e Oxaguiã ofereceu um grande banquete em celebração
pelo retorno do pai.”
Na versão de Pierre Verge do livro do “Dieux
d’Afrique”, Paul Hartmann Éditeur, Paris conta que
Xangô, amigo e não filho de Oxalá, teria designado Airá para tomar conta de
Oxalufã e carrega-lo. Em "Águas de Oxalá - Àwon Omi Òsàlá" Editora
Bertrand Brasil São Gonçalo, RJ José Beniste relata que Oxalufã
vivia com seu filho Oxaguiã quando resolveu visitar seu outro filho Xangô e que,
depois de libertado por Xangô, voltou para casa, onde Oxaguiã lhe ofereceu um
grande banquete, conhecido como a cerimônia Pilão de Oxaguiã. Já em Verge não
se encontra em nenhuma de suas versões referências a Oxaguiã. A previsão pelo
babalaô de que a viagem seria ruim e dos três encontros com Exu, por
sua vez, não estão presentes em Bastide.
Com o título Festa de
Bonfim, o texto teatral de Zora Seljan foi publicado pela livraria São
José, Rio de Janeiro RJ em 1958. 20 anos depois foi publicada uma versão em
inglês “The Story of Oxala- The
Feast of Bonfim” pela Rex Coolings, London, UK associada a
Sel Editor, Rio de Janeiro RJ.J José Beniste, reconhece em seu livro essa
peça como uma variante do mito do ritual, mas insiste em se tratar de uma
história romanceada. Entretanto, segundo a própria autora “a viagem
trágica de Oxalá é também contada por Pierre Verge, que a colheu na África (“Dieux
de l`Afrique”). Não há, porém, no texto do pesquisador francês, referências
aos motivos que levaram o orixá a enfrentar seu destino. O enigma foi
sendo esclarecido aos poucos, em lendas que surpreendemos no Rio e na
Bahia, sempre reveladas aos pedaços, esparsamente, como
se pertencessem a outras histórias.”
Para mim é uma das minhas versões favoritas do mito e uma das melhores
peças da minha avó.
Sinopse da peça:
"Oxalá
vivia em seu reino quando Nanan, sua esposa, ficou deprimida pelo nascimento de seu filho Omolu, com suas doenças
características de pele e por esse motivo escorraçado por todos. Diante disto,
Oxalá, como escultor divino, pega o barro e faz Exu para alegrar Nanan. Apesar
de belíssimo, Exu, por ser terrível e debochado, não trouxe a alegria a Nanan
que Oxalá desejava, pelo contrário, a aborreceu mais ainda, a ponto dela ir
embora para o reino de Xangô. Oxalá resolve ir atrás dela.
Ao consultando o oráculo de Babalorixá, Oxalá é avisado para não ir,
pois muitas coisas ruins poderiam lhe acontecer. Mesmo com as súplicas de sua
Ekéde e os avisos de seu filho com outra esposa, Oxaguian, o Oxalá-novo, Oxalá
insiste em ir, portanto é orientado pelo Babaorixá a ir sozinho, levar consigo
apenas três mudas de roupas brancas, óleo fino e sabão-da-costa e a nada negar
do que lhe for pedido durante sua jornada.
No caminho encontra por três vezes Exu, que lhe faz os pedidos que irão
desmoraliza-lo. Após isto, ao chegar ao reino de Xangô, é preso por ter sido
tomado como o ladrão do cavalo do rei.
As coisas passam a andar mal no reino de Xangô junto de seu filho Airá;
seus Obás (ministros); Nanan, que lhe pediu santuário e a nova esposa do Rei;
Oxum, que viera do reino de Oxóssi, seu ex-marido, após um mal-entendido. Os
anos se passam e todos sofrem com o colapso do reino.
Informado por
Babaorixá, a mando de Oxaguian, Xangô descobre o sumiço de Oxalá e manda todos
procura-los. Ordena que o Babalorixá jogue para saber seu destino, mas este
perdeu o dom do oráculo após a partida de Oxalá. Depois de mais sofrimento,
Airá tem a ideia de ir novamente até Orumilá, trancado em seu palácio, que não
atende ninguém desde então, mas desta vez pela insistência de Iansan o dono do
oráculo revela que um velho muito importante e distinto está preso à sete anos
injustamente no reino de Xangô e por isso todos sofrem.
Oxalá, sujo, de pernas quebradas e enfraquecido é retirado da prisão e
reconhecido por todos, que se desculpam, cuidando e lavando-o. Após todas as
explicações, Oxalá encontra Nanan e lhe pergunta o que ela deseja para
retornar para seu reino. Desesperada com o sumiço do marido, faz as pazes e
pede um filho que fosse tão belo quanto a coisa mais bonita do mundo , o
arco-íris e, assim, Oxalá cria e lhe dá como filho Oxumarê. Começam os
preparativos para levar Oxalá de volta para seu reino, e todos Orixás vestem-se
de branco em procissão para honra-lo.”
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